Se eu pudesse escrever uma carta ao mundo, quando saí do cinema após A Single Man, seria esta :
De vez em quando o universo nos apresenta algumas pegadinhas à nossa certeza de que não possuímos muitos preconceitos. Não vou dizer preconceito nenhum, porque penso que mesmo uma pessoa com um grande coração e que se tente manter longe dos prejudicios precisaria reconhecer que uma ou outra coisa não lhe cai bem, mesmo sem justificativa. Eu tenho várias, e alguma ou muita vergonha em reconhecê-las. No entanto, uma que não entendo e cuja persistência não consigo compreender é o preconceito ao amor entre pessoas do mesmo sexo.
Não entendo. Já está tão batido, tão discursado, filmado, escrito que seria de esperar que uma brecha tivesse se aberto num preconceito tão arraigado na nossa fala cotidiana. São pequenos detalhes, uma conversa meio bêbada na mesa do bar, a curiosidade com o casal do apartamento ao lado, a especulação. A ESPECULAÇÃO, a mesma que temos com um mundo exótico.
O amor acaba sendo exótico também numa rotina de tantas imagens aleatórias a que não prestamos atenção. Imagens que compõem o nosso pensamento sobre o mundo de uma forma muito categórica, tanto que podemos até não perceber. Podemos também ocultá-las com as palavras, como se estas fossem a mente, e as imagens, o coração, que, às vezes sempre de vez em quando, entram em contradição.
As imagens ambientadas no ano de 1962, trazidas por Tom Ford em seu filme A Single Man, poderiam ter um cenário diferente. Poderiam ser outros os anos. 2010 se encaixaria perfeitamente nele. George – Colin Firth – é o professor que perde seu amor de 16 anos e não pode gritar ou mesmo sussurrar sua dor, porque o amor era outro homem. O figurino ele veste todos os dias para encobrir a si mesmo. Um figurino que, mesmo ao despir para a melhor amiga, não o torna mais visível.
A incompreensão do amor homossexual eu não compreendo. E digo do patamar mais careta da percepção heterossexual. Ah, ia dizer aqui “e comportada”, mas me peguei de jeito e parei - o que não consegui fazer com o careta... O amor do mesmo sexo então não pode ser comportado, careta, rotineiro? Ele, por ser considerado diferente, é necessariamente transgressor, moderno, perversor e pervertido? Ele é só e obrigatoriamente fuga, dificuldade, revolta, ou, como diz a melhor amiga de George, Charlie, uma substituição para a “coisa de verdade”? A "coisa" seria um relacionamento real, e não a brincadeira do diferente que George estaria, para ela, encenando. Com todo o amor e respeito pelas amizades, que são essenciais e nossa âncora nesta existência, quem de fora de uma relação pode compreendê-la, mesmo os mais próximos? E quem disse que o amor está isento de preconceitos?
Hannah Arendt, em A Condição Humana, conta como certas coisas, para sobreviverem, precisam ficar ocultas ao olhar. Assim é o amor. Porém, num mundo em que a visibilidade se torna também reconhecimento, como viver o amor sem tê-lo reconhecido? E o reconhecimento das diferenças, tão discutido, mas que fica somente na superfície do nosso cotidiano?
Não discuto conceitos religiosos; eles, para mim, estão muito acima de qualquer opinião pessoal. Crenças muito fortes nos compõem, e discuti-las não é uma questão de opinião ou discurso. Mas sim, a meu ver, de entendimento e respeito
Então que fico, aqui, com a minha percepção. A humanidade é tão diferenciada quanto o numero de pessoas no mundo. As razões da atração e repulsão podem ser discutidas, mas nunca reduzidas, acho, a teorias que pretendam englobar todos os que caminham ou caminharam na superfície instável da terra. Os preconceitos, porém, são outra coisa. Podem ser visualizados como uma naturalização da opinião. Marcam as diferenças não como forma de compreensão da enorme complexidade do ser humano, mas como forma de reduzi-lo a padrões determinados.
Vale ressaltar ainda que, respeitadas as diferenças, não se poderia perder de vista o que é essencial e uno: a humanidade que todos deveríamos partilhar. Humanidade que se perde na violência física, mental, alegórica. Esta última, para mim, engloba o preconceito.
Tom Ford nos colocou no ano de 1962 e nos mostrou um retrato atual. Eu o amo profundamente por isso, e por sua delicadeza, beleza – o filme é quase gráfico -, honestidade e ironia.
A proposta aqui é trazer escritos de ficção que os filmes me trazem. Bom, um discurso panfletário pode ser ficção também. E o filme, ficção assumida, pode transformar-se numa realidade palpável, dolorida, intensa e poética.
A Single Man (O Direito de Amar). De Tom Ford, EUA, 101 min, 2009. No Cine Academia, em 05 de abril de 2010. Perdi o começo do filme porque me foi vendido o ingresso para o filme errado e eu não percebi. Entrei numa outra sala e vi o começo de Diário Perdido. Bom, permaneci na sala – a certa, dessa vez - depois do fim do filme para ver o seu começo, e não me arrependi. É lindo, suave, e confere a tônica para todo o filme. Nesse tempo de espera entre uma sessão e outra, conversei com a idéia do texto acima.
PS 2: Enquanto escrevia este texto, não me saía da cabeça Open Your Eyes - Snow Patrol Não sei se é muito óbvio, mas adoro a música. Ela veio, então tudo bem. Tá valendo...
Fiquei sem palavras, deve ser pq minha mente ainda está digerindo o texto.
ResponderExcluir" O amor do mesmo sexo então não pode ser comportado, careta, rotineiro? Ele, por ser considerado diferente, é necessariamente transgressor, moderno, perversor e pervertido?"
Foi o que mais me chamou a atenção no texto de hoje, e tá botando as minhas cacholas para funcionar.
Textos assim nos fazem sair da dentro da Caixa. Sabe?
Adoro sempre.
Beijos e obrigada.