terça-feira, 29 de novembro de 2011

Something

Um dia eles dois apareceram em casa e eu nem sei como foi. Lembro que, se um dia eles não estavam lá, no outro eu já os cortejava, escondida da minha irmã.



Eu tinha sete anos e, numa casa de adultos, não tinha um espaço meu. Havia a sala, lugar de todos. Em ideia, porque ali predominava meu pai, em frente à televisão, fumando seus cigarros de palha fedorentos. O quarto da minha mãe era dela, espaço limpo e arrumado, nele eu não podia permanecer muito tempo. O meu quarto? Eu o dividia com a minha irmã mais velha, então meu ele não era... Assim, com a casa cheia, a vizinhança era meu reino, a bicicleta meu transporte, as horas fora da escola o meu tempo de ser.

Mas, às vezes, a casa ficava vazia... e nela, então, eu reinava.

Foi assim que me aproximei do primeiro disco dos Beatles. Como disse, eram dois. E eram da minha irmã. Na sua ausência, eles eram de ninguém... e deles eu me aproximei aos poucos.



Fui na ordem. O Álbum Vermelho, com aqueles quatro esquisitos na capa, eu segui por lados e faixas. O primeiro disco, lado A. O primeiro disco, lado B... e assim, foi, até chegar a Yellow Submarine, a última  do bolachão. No que tinha de linear nas faixas, esse caminho teve de fragmentário no tempo eu que eu o ouvi. Com sete anos, minha favorita era Michelle e, nessa idade, minha irmã ainda achava graça de chegar em casa e encontrar sua irmã caçula ouvindo a faixa, over and over again. Que bonitinho.

A algumas histórias, como as vejo agora, tive resistência nesse disco. Mas essa contrariedade permaneceu, e até hoje não gosto muito de Day Tripper ou Paperback Writer...

Do Álbum Vermelho, bem mais tarde, passei ao Álbum Azul. Pude, então, entender porque as capas desses discos eram diferentes. O mesmo local, mas em cores e faces distintas. Num, o quarteto bonitinho estava assim, mesmo, bonitinho... na outra, eles se encontravam diferentes, cabeludos, mais velhos. O Álbum Vermelho e o Azul foram se tornando tão diferentes quanto Paul, John, George e Ringo nas fotos.



Foi com o Álbum Azul, também, que minha curiosidade com o que as músicas diziam se tornou mais forte. Junto com um dicionário  inglês/português que encontrei pela casa, pude, aos poucos, desvendar o quebra-cabeças das palavras desconhecidas para a narrativa que as letras traziam.

Aos poucos, também, busquei saber mais sobre quem havia escrito e cantava as músicas que ouvia. Com dez anos, deparei-me com a morte absurda de John Lennon, um dos cabeludos da capa. E descobri, assim, que ele era muito mais que uma foto na contracapa de um álbum. Também soube que eles haviam se separado em 1970, ano em que nasci. A cada faixa que eu passava no Álbum Azul, mais de sua história se desvendava para mim.

Mais músicas faziam sentido, enquanto outras pareciam muito bizarras. Muito, muito bizarras. Mas eu continuava pelas faixas, sem pular nenhuma, num caminho de conhecimento e amadurecimento precioso.

Eu achava que estava no caminho contínuo, mas me enganei. Os discos haviam sido trocados em suas capas... e foi assim que cheguei ao lado A do segundo disco após já haver me dirigido, Acros the Universe, em direção a onde nascia o sol. Turururu.

E, assim, a maior surpresa estava por vir. Em fotografias de memória, vejo-me em casa, sozinha, na penumbra de um quarto que deixava o sol lá fora. Minha mão pegou a agulha do toca discos e a colocou na próxima faixa inédita para mim. E o mundo parou. 

Os primeiros sons de While My Guitar Gently Weeps me circularam como um ar brilhante. Paralisada, sabia que ali estava algo diferente de tudo que há havia ouvido. Que já havia sentido. Que já havia percebido. Que era uma guitarra perfeita, eu não sabia. Que George Harrison viria a ser meu Beatle favorito,eu nem imaginava. George who? 

A única coisa que eu sabia é que o mundo tinha de ser assim, como eu me sentia naquele momento.

Depois, o mundo se expandiu para além dos Álbuns Vermelho e Azul da minha irmã. Num programa de rádio sábado à tarde, a que eu ouvia recolhida num mundo próprio, enquanto esperava na fila para lavar o carro, vi que ele realmente ia muito além da seleção que ouvi nos dois discos. Outras histórias, momentos e, agora, CDs fizeram parte de mim. Os Beatles, eu vi então, eram mais do que eu imaginava aos doze anos. E esse mais compôs boa parte da minha visão de mundo.

Mas While my Guitar Gently Weeps permaneceu e permanece, num instante único, cristalizado no meu coração, como um refúgio especial no começo do mundo. 



Há dez anos, George Harrison voltava para casa. Sempre que penso nele, volta, para mim, o momento em que percebi o que uma música poderia significar para mim - com While My Guitar Gently Weeps. A força, o brilho, a confusão e, ao mesmo tempo, a completude de sons e narrativas que parecem me colocar no mundo - e não me tirarem dele. 

Dizem que todas as histórias são autobiográficas de alguma forma. Assim é dito em relação aos fatos que conta... Mas penso que pode haver mais proximidade aos fatos na ficção que num relato factual de acontecimentos passados. Tentei mesclar os dois nesta história, para contar da minha saudade de uma pessoa e músico incríveis. 

PS: Eu realmente não desisto. E por mais que ame George Harrison, há uma música dele que não suporto por nada no mundo e chega a me dar enjoo quando escuto... e ela é justamente Something. Para fazer justiça ao que ela represente na história de GH, eu a trouxe no título.

PS2: Os Degraus de Amèlie seguia com a apresentação de histórias que fazem parte de uma trilogia. Assim são os dois posts anteriores a este... falta ainda uma parte dessa tríade, que deve ser apresentada, espero, por esses dias...