terça-feira, 29 de março de 2011

Ghost Stories Around the Campfire ou O Fim do Mundo: Parte 5.001.


Exterior. Noite. Uma floresta no meio do nada. Entramos na história durante   uma discussão acalorada...
“... e todos esses elementos não se encontram em qualquer filme. Cita um exemplo para mim, se conseguir! Um fim do mundo com todas as catástrofes de que se tem notícia não é para qualquer um. Explosões. Famílias separadas. Romance. A terra se abrindo, o céu despencando. E uma big nave no final! Onde mais você pode encontrar isso?”, John disse. Estava exaltado e gesticulava muito. Tentava fazer predominar o seu ponto de vista. Tentava também se esquecer de onde se encontrava.
“Cusack, man, fica calmo. Agora não adianta mais ter pressa. Veja só, terra abrindo, naves espaciais e ainda assim o filme é chato que dói. Monótono. Sonífero. Além de estar muito longe do que realmente causou o fim do mundo, como a gente pode ver agora.” Nunca poderíamos pensar em Will Smith como um cara sensato, mas aqui está ele, tranquilo, em volta da fogueira, pensando na vida.
“Fácil para você dizer isso. Seu filme foi um sucesso de bilheteria, uma referência para os fins de mundo que se sucederam no cinema.”, disse a única mulher do grupo.
“Tá, isso é importante. Mas quem é Will para opinar sobre fins do mundo?”. Dennis resolveu palpitar na conversa.
“Cara, Eu Sou a Lenda! Eu, Robô!!! Além do que sou o primeiro grande sucesso de Emerich. Aqui, somos todos crias dele, mas eu vi mais fins de mundo enquanto a terra ainda estava inteira do que a maioria das pessoas pode ver agora.” Apesar do protesto, a voz de Will ainda era calma.
“Uhum”, Woody limpou a garganta, chamando a atenção para si. “Que pessoas?”. Son of a Bich, não é que ele tinha razão? 
Silêncio total.
Indeed. Que pessoas?
“Como podemos ter certeza de que não há mais ninguém? Nos filmes, há sempre outros sobreviventes, além dos protagonistas. Embora só se saiba disso ao final.”Jake apresentou um ponto importante, embora estivesse ali somente porque a autora desta história o acha fofo demais para perecer no final dos tempos.
“Jake, meu querido, não dá para pensar o mundo de acordo com Rolland Emerich. Todos nós estamos aqui por causa dele, mas nem por isso ele estava certo. Ataques alienígenas, o retorno da era do gelo, previsões para 2012... a realidade foi muito pior do que todas as visões dele. Mesmo com todos os alertas, ninguém estava preparado para o que aconteceu...”, Amanda Peet interrompeu o que dizia. Só de pensar em como o mundo havia acabado ela tinha calafrios. Melhor parar por aqui.
“Para mim, o congelamento foi o mais legal.” Claro que Dennis ia pensar assim, o filme havia sido um de seus últimos sucessos. “A cena da biblioteca, o chão congelando... amazing.”
“Não acredito que você prefere um picolé de concreto que uma super nave espacial que salva a humanidade...” John Cusack realmente se recusava a largar o osso.
Mas a discussão era só um passatempo. Ao redor da fogueira, John Cusack, Woody Harrelson, Amanda Peet, Will Smith, Dennis Quaid, Jake Gyllenhaal e Danny Glover sabiam que nenhuma argumentação iriar mudar o fim dessa história.
Mas o silêncio era muito pesado, e Danny resolveu retornar a discussão:
“Para mim, um dos melhores é O Núcleo.”
Protesto coletivo.
“Como assim? O troço é horrível!!!” “Hahaha, entrar no centro da terra pelas placas tectônicas!”. “Nem Aaron Eckhart salva o filme!”. Tudo isso foi o que deu para ouvir no meio da confusão.
“Na verdade, eu gostei muito do filme também”, disse Amanda. Diante dos olhares que recebeu, ela acrescentou: “Gostei mesmo. Nem todo filme ruim é desprezível.” Ela concluiu, rindo.
Isso era verdade, e todos sabiam. Afinal, se não fosse assim, como justificar que seus filmes de fim de mundo houvessem sido um sucesso de bilheteria? Nem sempre gostamos do que é bom, e muitas vezes adoramos o que é realmente muito ruim.
“Ok, mas isso não justifica dizer que 2012 é um filme bom...” Will Smith também não conseguia dar o braço a torcer. A vida ia ficar complicada se ele e Cusack  não cedessem um pouco.
Mas, a essa altura, nem Cusack protestou. O silêncio dominou o círculo, e só se ouvia o crepitar da fogueira. Os pensamentos eram quase visíveis, de tão intensos. Cada um mergulhado em sua contemplação, os passos que se aproximavam passaram despercebidos.
Quando eles notaram uma presença estranha, a criatura já estava muito próxima.
“Hehehey, o que é isso? Reunião das almas perdidas?”, disse o andarilho, em voz forte.
O susto foi épico. Quem diabos era esse que se aproximava? Holy shit, mais um ataque? Bom, se todos tivessem mantido o controle num primeiro momento, teriam reconhecido a voz. Mas não, a surpresa foi aterrorizante. Vários minutos se passaram antes que eles se acalmassem a ponto de verem quem estava ali.
Bruce Willis.
“Pensaram que estavam sozinhos no mundo, heim?”, Bruce era observador. “Quer dizer que o mundo acaba e só os escolhidos de Emerich sobrevivem? E, além de sobreviverem, ficam parados esperando o mundo acabar de novo? Losers.”Esse era Bruce, definitivamente.
Depois do susto, a alegria. E as perguntas:
“Há mais alguém no mundo? De onde você vem? Para onde está indo?”. E, afinal, a mais importante: “Como você sobreviveu?”
Bruce riu muito. “Guys, eu sou duro de matar. Já perderam a noção das coisas? Afinal, o mundo não acabou há tanto tempo assim. Não esqueçam que eu sempre encontro uma alternativa. O bandido pode sobreviver a quinze mortes, minha casa pode explodir um milhão de vezes, meu avião pode se espatifar no chão, mas eu continuo.” Vamos ser justos, ele estava certo. E havia somente uma gota de convencimento na sua voz, como não poderia deixar de ser.
“Enquanto houver ar, chão sob os meus pés, eu continuo. Careca, gordo, dentro ou fora das telas, eu estou aqui. Motherfuckers!!! Eles acham que conseguirão acabar comigo! Eles podem me matar quantas vezes quiserem, I'll be Back!!!”
Ok, a frase era emprestada, mas causou efeito. Esse era um discurso digno de final de filme. Como o susto, quase épico. Repleto de energia, esperança, cafonice e instinto de sobrevivência.
 “A escolha agora é de vocês. Não me agrada muito carregar o peso de Emerich nas costas, mas vocês podem vir comigo. Enquanto eu estiver aqui, a luta continua.”
Bruce Willis parecia um gigante. Mais alto e careca que nunca, emanava a força de um verdadeiro lider. Perplexos, todos levantaram e se moveram – algo que não faziam já há algum tempo. Bruce não esperou a resposta. Virou as costas e continuou seu caminho. Atrás dele, John, Amanda, Will, Danny, Dennis, Jake e até Woody seguiram em silêncio.
A batalha, afinal, estava apenas começando.


Invasão do Mundo: Batalha de Los Angeles (Battle: Los Angeles). Jonathan Liebesman, US, 2011.  Esta é uma história que queria escrever há tempo. Na verdade, foi a ideia deste texto que me levou à concepção deste blog. Depois de assistir a 2012 (Rolland Emerich, US, 2009), pensei em como seria se os envolvidos em diversos fins de mundo cinematográficos se deparassem com o fim. Qual seria a sua referência? Seus filmes? Quem sobreviveria?  Outros filmes de Emerich citados no texto são: Independence Day (1996, US) e O Dia Depois de Amanhã (The Day After Tomorrow, 2004, US). Deste último eu gosto muito. A minha sessão foi muito realista também: o cinema estava um gelo e havia uma criança de um ano no cinema, que chorou muito. Fim do mundo total. E amei o chão da biblioteca congelando. Outra citação no texto é O Núcleo (The Core, Jon Ames, US, 2003). Mesmo que meio longa, vale aqui contar uma outra história: estava assistindo a esse filme na TV quando minha sobrinha, que é geóloga, chegou. Contei para ela a história – o núcleo da terra parou, o que causou vários problemas na terra. Para impulsionar o núcleo a voltar a girar,  Aaron Eckhart vai ao centro da terra. A reação dela? Que mentirada. Ok. Aí ela continuou: bom, o cara para fazer isso tem de ser um geofísico. Check, isso mesmo.  Se o núcleo para, há uma pane em tudo que é eletromagnético. Check. Para entrar no centro da terra, precisa ser pelas placas tectônicas. Check. Haha, onde está a mentira??? Rs.

quinta-feira, 24 de março de 2011

A realidade que superou a ficção



SPOILER ALERT + SPOILER ALERT + SPOILER ALERT + SPOILER ALERT

Recomenda-se a leitura desta história para as pessoas que viram o filme Lembranças, de Allen Couter, 2010. Há referências, aqui, a um dos personagem, assim como sobre o final do filme. Este, ao meu ver,  deve ser visto sem nenhuma idéia prévia do que se trata. Por isso todo esse estardalhado do spoiler alert, rs.
Mas essa é apenas uma sugestão, porque a escolha é sempre sua!!!



Daniel, que sempre amara os filmes,  ainda tinha a capacidade de se impressionar quando sua vida se parecia com um. Não em enredo, o que era muito difícil numa existência de 21 anos sem muitos acontecimentos drásticos, dramáticos, engraçados. Uma vida, enfim, sem acontecimentos que ele pensava serem dignos de uma narrativa cinematográfica. A semelhança não eram as tramas, mas as imagens.
Este momento mesmo. Ele encontrava-se no sofá, enrolado em si mesmo, no que seria outra tarde preguiçosa de domingo. Largou o livro que lia sobre o colo, esticou as pernas, que estavam cruzadas numa posição que sempre considerara meio desajeitada ao olhar do outro, mas que se adaptava perfeitamente ao conforto de que necessitava seriamente ao ler. Olhou para o lado em direção à luz que entrava pela janela.

Lá estava Caroline. A luz do final da tarde a envolvia para, então, cruzar a sala do apartamento. Ele sabia que se a chamasse agora, ela não ouviria. Às vezes, como neste momento, ela se perdia, no nada. Para estar ao seu lado, era preciso entender. E Daniel o fazia sem esforço e sem necessidade de explicação. Não era racional, ele não sabia por que compreendia. Mesmo assim, sabia que essa ausência era parte dela, um todo que ele amava também sem necessidade de elaboração.
Mas a explicação de certa forma viera, um ano atrás. Ele acordara sozinho na cama, no apartamento de Caroline. Sonolento, notara a sua ausência e voltara a dormir. Havia acordado novamente mais tarde, andado meio perdido pelo apartamento. Tomou banho, arrumou a cama e se recostou nos travesseiros para esperá-la. Lendo. Ele lembrava que não havia ficado ansioso, nervoso ou preocupado. Difícil ter qualquer um desses sentimentos na casa de Caroline ou em sua presença. Ambos eram claros, belos, serenos e intensos. Ali ele ficou. Leu, dormiu mais e acordou com ela sentada ao seu lado.
Pernas cruzadas, vestido preto, cabelo solto, sua figura era serena. Ela estava de luto, mas Daniel não fez a associação de imediato. Com tranqüilidade, a mão nos cabelos de Daniel, ela contou a história das manhãs de 11 de setembro, vividas em homenagem ao irmão desde o primeiro “aniversário” do atentado.

Daniel ouviu a história, e outras imagens vieram pela narrativa de Caroline. Reconhecimentos que encontrou no cinema. Em 2001, com 12 anos, as imagens do atentado às Torres em Nova York e a reação das pessoas se misturavam em sua imaginação. Ao ver os aviões se chocando com as torres na televisão, tudo lhe pareceu estranho, alienígena, distante. Ele estava ali, e todo o alvoroço lhe pareceu desproporcional.
A proporção da tragédia, para ele, chegou pelas histórias no cinema. Narrativas ficcionais ou baseadas nos contos de sobreviventes e familiares,  elas eram igualmente ficção para ele. Histórias contadas por diferentes narradores, diferentes imagens, elas não eram mais palpáveis para ele se contadas por uma pessoa. Elas o conseguiam atingir muito profundamente quando em uma música, um livro ou imagens do cinema. Bom, de qualquer maneira, todas elas  traziam para ele uma parte do lugar que era, agora, não mais um país estrangeiro, mas a sua casa. A cidade da qual fazia parte. Na qual andava, estudava, vivia. Na cidade onde se apaixonara.
A história de Caroline não era muito diferente das que ouvira antes. Nela ele ouviu a perda, a tragédia, o inesperado, o luto, o entendimento, a superação, a saudade, a homenagem, o amor. A forma como Caroline a contou, no entanto, mudou tudo. Quando achou que nada mais lhe surpreenderia sobre o já tão desgastado atentado às torres gêmeas, Caroline e os outros personagens da sua história o comoveram de uma forma surpreendente e triste. Assim foi não pela proximidade de Caroline com o que ocorreu, mas pela sua forma de contar a história. Nela, as relações mais profundas e as mais banais fizeram parte da tecida delicadeza com que contou sua história. E a ela conferiram uma intensidade que escapava ao sensacionalismo, ao oportunismo político  e à exploração da dor que ele presenciara até então.
Na história de Caroline, todos os personagens a compunham de forma delicada, intensa, importante.  O fim, o atentado em 11 de setembro, conferia ao conto a finalização, dava seu impacto. Mas não reduzia o que acontecera antes, ou que estava para chegar. As relações entre os personagens da sua história, permeadas por tragédias menores e a maior delas, não se reduziam, no entanto, à perda.
Tudo isso Daniel pode entender neste domingo, quando acompanhou Caroline, sua mãe e padrasto, seu pai, Ally e Aidan, na visita ao túmulo de Tyler, irmão de Caroline, morto no ataque às torres gêmeas. Mais um 11 de setembro, dez anos depois do primeiro. Uma data que tomou outros significados, não só pelos eventos que a marcaram nos Estados Unidos em 2001. Mas também por todas as historias que transformaram o fato e as pessoas que dele participaram em personagens de uma grande narrativa. Narrativa da qual, nessa tarde de domingo, ele era personagem também.




Remember Me (Lembranças). De Allen Coulter, EUA, 113 min, 2010. Assistido três vezes no cinema, duas seguidas, em março de 2010, no Embracine, Casa Park, outra com a Pat querida, no Cinemark, na sessão mais trash de que tive noticia nos últimos tempos...

terça-feira, 22 de março de 2011

Never Coming Home

Quanto JT voltou para casa da sua primeira missão no Iraque, Anne achou que tudo ia mudar. A rotina, o cinema de quarta-feira à noite com os pais, o café da manhã no domingo. Mas, fora os primeiros dias que se seguiram ao seu retorno, as coisas ficaram, na verdade, melhores.
Nos primeiros dias JT só dormia, comia, ficava um pouco com a família na sala de TV e voltava para a cama. Não estava triste ou nervoso ou meio louco. Anne havia visto alguns filmes de guerra na televisão, quando seus pais não estavam perto. Quis ver Nascido a 4 de Julho por  causa de Tom Cruise, num filme que ele fez antes mesmo de ela nascer. Não que tivesse gostado muito, aquele cabelo estava esquisito e ele passava a maior parte do filme gritando. Gostava sim de um outro filme sobre guerra, muiiiiiiiiito mais antigo que esse, porque o personagem lembrava um pouco JT. Mas o filme era realmente muito velho, muita coisa ela tinha certeza de que havia entendido errado, e o cara voltava da guerra sem andar, o que ela esperava não acontecesse com JT.
Seu pai gostava de outros filmes sobre guerras e tinha vários deles em casa. Ele os chamava de clássicos e de cinema de verdade. Ok, eram todos em preto e branco, mas ainda assim ela não via muita diferença. Além disso, nenhum dos personagens se parecia muito com seu irmão.
Depois dos primeiros dias, JT voltou a ser a formiga atômica que era quando adolescente, antes do exército. Eram as férias de primavera, e Anne não tinha de ir à escola. Foram os melhores férias em muito tempo. Ele queria ficar com toda a família, os amigos, mas especialmente com ela. Andaram de patins no calçadão da praia – ela andou, ele acompanhava correndo. Tomaram toneladas de sorvete. Foram ao cinema. Jogaram playstation. Passram muito tempo apenas conversando sobre nada, sentados na varanda da frente, tomando limonada, venod as pessoas passaram. JT fazia perguntas engraçadas sobre sua escola e amigos.
Esses foram os dias depois dos primeiros.      
Depois vieram os dias antes da volta para o Iraque. Fim do feriado de primavera, Anne voltou para a escola e encontrava JT apenas à tarde. Ela tinha deveres para fazer, milhões deles, os pais voltaram ao trabalho, a rotina da casa retornou. JT era uma presença maravilhosa, mas não mais novidade. Anne sentia como se a casa e companhia da família tivesse deixado de ser novidade para ele também. Começou a ficar inquieto, levantava da mesa no meio do jantar, andava de um lado para o outro. E só conversava sobre guerra. Sobre as suas missões no Iraque, sobre os seus companheiros de missão, sobre o calor, as bombas, as pessoas na rua.
Falava muito sobre o hurt locker da sua companhia. Ele o admirava e contava coisas que Anne ouvia sentada no alto da escada, escondida. Ela não sabia, no entanto, se aquilo era verdade. Pedaços de bomba guardados numa caixa como se fossem brinquedos velhos. As bombas escondidas em carros; na terra, no chão, no meio da rua. As pessoas que explodiram com as bombas que não desarmaram. Eram histórias tão estranhas, que mesmo vindo dele não faziam sentido. 
O que era mais estranho era que ele não estava mais ali. Anne não tinha coragem de comentar isso nem com sua mãe, achava esquisito. Ela podia vê-lo, mas era como se ele ainda estivesse na guerra. Como se não tivesse voltado para casa, e os dias depois dos primeiros dias fossem apenas fotografias de outras férias. Não comentava também porque achava que estava sendo ingrata. Seu irmão estava ali, vivo, e ela não podia ficar mais alegre com isso.
Se ele não pudesse mais andar, ou tivesse ficado louco e gritasse com todo mundo talvez ela entendesse. Mas não conseguia compreender por que ele não falava mal da guerra. Ele só contava aventuras, como se gostasse de lá. Como se lá fosse a sua casa, como se o sargento da bomba fosse o seu irmão, e não ela.
JT voltou para o Iraque, e só deve voltar em um ano. Uma missão mais longa. Ele deu um abraço apertado em toda a família antes de partir, falou coisas engraçadas para não ficarem tristes. E partiu como se estivesse indo para um lugar muito legal, animado, e não a guerra.
Com um aperto no coração ao vê-lo ir embora novamente, Anne sentiu como se ele não tivesse mais voltado.



The Hurt Locker (Guerra ao Terror). De Katrhryn Bigelow, US, 2009, 131 min. Lembrei muito de Coming Home (Amargo Regresso) quando vi esse filme, a percepção de que a guerra acaba com a possibilidade de o soldado voltar para casa. Mesmo que ele saia vivo da guerra, ele não retorna. Em O Narrador (Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, Obras Escolhidas I), Walter Benjamin diz que os soldados voltam da guerra vazios de narrativa, pois a guerra é uma das experiências mais desmoralizantes que se pode vivenciar. Dela não se volta rico em experiências, mas completamente vazio. 

sábado, 12 de março de 2011

Movie Kitchen

Hamburgo sempre foi, para mim, a cidade para a qual os Beatles perderam o seu primeiro baixista e onde todas as bandas legais da Europa tocavam no começo da careira. Local dos shows de rock mais loucos, eu achava a cidade incrível.
Em 2009, cheguei ali para fazer um estágio na nova empresa em que iria trabalhar, de desenvolvimento e expansão de serviços de catering. Eu não cozinho, nem a água do chá eu fervo – a chaleira é elétrica. Que eu goste de chás dos mais variados e elegantes é uma surpresa para a minha mãe, que conhece o meu paladar bastante básico. Junk food da melhor e pior qualidade é a minha especialidade, somente com certa discriminação – as batatas precisam ser bem fritas...
Bom, o catering. A empresa desenvolve expansão de serviços de fornecimento de comida para vários setores do mercado. Um deles, o cinema. E na área de expansão eu me locomovo bem. Tenho uma curiosidade insana de conhecer diferentes setores da vida, e essa característica me rendeu um excelente emprego de bisbilhoteira profissional. Além de várias experiências inusitadas.
Uma delas foi na páscoa de 2009. Sozinha em Hamburgo, uma cidade desconhecida, de uma língua impossível para mim – apesar de eu amar o seu som -, resolvi convidar os dezesseis estagiários da empresa, pessoas capazes, jovens e neuroticamente empreendedoras de, se não todas, muitas das partes deste planeta, para almoçarem em um dos minúsculos flats em que vivíamos. A área residencial em que nos colocaram era ótima, mas sem muito comércio perto. Em vez de nos aventurarmos, como de costume, pelos diferentes locais de Hamburgo, vimos na idéia de uma reunião em casa a oportunidade para nos aproximarmos, conhecermos melhor – mais? - e nos divertirmos, claro. Hoje eu penso que era, também, uma tentativa nunca reconhecida – éramos descolados ou não? - de não sentir saudades da família. Mas esta era uma razão totalmente velada. Na capa do filme, todos éramos almas desgarradas no universo...
E então se deu a largada ao frenesi. Nada do que me proponho a fazer fica impune da neurose e exagero. Feito o convite, entrei numa maratona de idéias, para tentar fazer algo aconchegante, inovador, criativo, delicioso, incrível, impossivelmente irresistível e, claro, barato. A escolha de um tema ficou rondando a minha cabeça por algumas noites – de dia o trabalho não deixava espaço para enlouquecer com outras idéias. Antes de dormir, um dia, navegando nos canais da tv alemã – era engraçado -, alcancei o filme Simplesmente Marta pela metade. Como muitas das coisas em que me envolvo, o cinema deu a tônica. Trabalhava, entre outras coisas, com catering para produções cinematográficas. AHa. O tema da nossa páscoa iria ser, estava decidido, as comidas do cinema. Depois das congratulações pela genialidade (!!!), a procura.






Filmes em que a comida predomina? Tentando lembrar alguns, devo ter esquecido muitos. A Festa de Babette foi uma referência imediata, mas o cardápio sublime de Babette não fazia muito sucesso para mim fora da tela. Sopa de tartaruga, ovas de salmão, codorna... sou muito da carne processada para encarar de frente esse dinossauro. A sobremesa, talvez. Qual era? Tinha de pesquisar. Bom, mesmo sem tartaruga, ficou claro para mim que o clima do filme tinha de estar presente. Anotei mentalmente: afastar os poucos e feios móveis da sala e dominá-la com uma mesa gigante, montada de alguma forma. Não seria difícil, e todos os outros poderiam trazer suas próprias cadeiras. As louças iam dar trabalho também, mas isso eu podia resolver na boulangérie próxima, nosso único refúgio de croissant e canela nesse mar de residências alemãs minúsculas que era a nossa vizinhança.
Well, well. Que outros filmes? E o cardápio? Bom, de Simplesmente Marta, só se fosse a pizza ou o macarrão que o italiano prepara para a sobrinha. Julia & Julie, recente à época, eu amei, e dele escolhi o bolo de chocolate com amêndoas. Hush: baixei na internet o livro de Julia Child, escaneado de uma forma especialmente torta, mas ainda assim legível. Teria de fazer as bruschettas que Julie janta em uma cena, todos os tomates caindo no prato, uma bagunça. Desde o filme, fiquei mais obcecada que o normal por azeite, tomate e pão. Cheguei a me submeter a cópias infames – apelei inclusive para o Friday`s... -, apenas para não ficar na vontade. Mas o pato desossado não ia acontecer. Apesar disso, já podia visualizar todos os exilados, companheiros de schnaps, sentados na sala, em um dia frio, mas ensolarado, girassóis na sala alegrando a nossa existência – olha a viagem –, a satisfação e o agradecimento por uma comida tão boa... Alucinações a Amélie Poulain.


Certo. Havia também aquele filme dos gregos da cozinha, com as almôndegas com canela. Esqueci o nome. Mas moussaka me parecia muito difícil de fazer, apesar dos meus planos grandiosos, e esse foi outro filme que ficou somente na lembrança. As berinjelas de Mediterrâneo. Amo a cena do final. Azeitonas... O tiramissu de O Filho da Noiva. Pára por aí, porque não precisamos de uma terceira sobremesa. Ou talvez fosse uma boa idéia, variedade nunca é ruim. Os filmes com as histórias dos cozinheiros mais ilustres não me tocavam. Vatel, não. COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE, como podia esquecer? Tinha, inclusive, de dar um jeito de algumas lágrimas caírem na panela. A história estava ficando boa.
Confesso não ficar muito encabulada de reconhecer que, no que se trata de comida e imagens, as que mais me marcaram vieram de Queer Eye for the Straight Guy, o programa dos caras correndo a que não assisto mais, mas em que era viciada não há muito tempo. Pizza de pão folha com azeite, alecrim e parmesão, todo mundo adora. Cogumelos recheados de queijo de cabra e alecrim... de novo. Bom, até aqui, três entradas, três sobremesas, provavelmente muiiiiiiiiiiito vinho e conhaque e mais o que chegasse, queijo com certeza, mas nenhum prato principal.
E se eu inovasse de verdade e servisse hambúrguer? Não enlouquece, Amèlie. Raviolli de Champignons seria uma idéia divertida, mas todo mundo ia pegar no meu pé e me chamar de vampire nerd. Bom, talvez o spaghetti não fosse má idéia. Podíamos pensar sempre na Dama e o Vagabundo... Na angústia do cardápio perfeito, todos os filmes que me enlouqueceram de vontade de sair do cinema e cair na comida apresentada desapareceram da memória.
Lembrava de Chocolate, mas vamos dar um freio no doce.
Minha cabeça já doía só de pensar no assunto. Que crédito para o meu almoço bucólico. Bucólico, bucólico... Provença é legal. Mas não lembrava de nada ainda. Não é difícil pensar nas pessoas aboletadas numa mesa embaixo de uma árvore, muita comida, pão, vinho na mão... Mas mesmo assim, nada de lembrar dos cardápios. O protagonista eram as intrigas e o vinho. Itália? Não queria. Precisava de algo inovador.
Vários dias pensando no assunto, revi meus conceitos. Precisava tomar uma atitude. Assim, spaghetti ia ser. Com almôndegas. Divertido, leve, irreverente... Tomada a resolução, mesmo sem muita convicção, a paz se abateu sobre a terra.


Somente alguns dias antes do domingo de páscoa, já com a lista de compras pronta, o acerto da louça fechado com Hildegard, a dona da BoulangeriePain Allemand, o ex-marido é francês, daí a preferência pelo croissant -, os girassóis encomendados no mercado de flores, Cedric, um irlandês insano no meio de um povo não muito certo da cabeça, nos convidou para comer e beber de monte num restaurante na região do porto de Hamburgo. Houve protestos iniciais, um receio fingido, mas a excitação e curiosidade foram maiores, e todos concordaram. Essa era uma região ainda bastante desconhecida para nós, não muito recomendada, mas atraente na sua diferença. Sá havia faltado, até agora, um motivo para chegarmos lá – como se tudo que fizéssemos precisasse de uma razão plausível. Mas a notícia era que o restaurante era o máximo, a comida de um cheff famoso era acessível, a música maravilhosa, e, no final da noite, todos dançavam e bebiam e faziam mais o que acontecia de fazer.
Eu fui com a minha lista do almoço ainda no bolso do casaco, esperando uma oportunidade para ir ao mercado.


Soul Kitchen era o paraíso. Tudo o que se esperava e mais, muito mais. A nossa legião de gafanhotos – 16 pessoas andando em bando parecia uma praga – se encaixou sem problemas no galpão. O nosso barulho não era mais do que uma pedra jogada no oceano no meio do caos. A comida? Linda, o máximo. Carregada em bandejas acima das nossas, não era raro ela não chegar à mesa, surrupiada pelas mãos dançantes. As pessoas? Ninguém igual, uma delícia. Todos juntos e cada um por si.
Enlouquecemos. Jantamos na quarta, saímos de lá de manhã e só passamos em casa para tomar banho. Ao chegar ao trabalho, jurei que ia ao mercado quando saísse. Era quinta-feira, e acabamos no  Soul Kitchen de novo. Nem disfarçamos com um schnaps antes. Cheguei a minha casa com uma leve culpa e a lista do mercado ainda no bolso. Na sexta, numa cidade deserta, aquele era o único lugar a ir, claro. E quem vai ao mercado na sexta-feira santa??? Cheguei a casa dessa vez com uma lembrança bastante longínqua da lista... que foi parar embaixo do sofá quando joguei o casado no chão, ainda beijando o irlandês.


Os dias se passaram, se embaralharam, e perdemos um pouco a noção do tempo. Afinal, o paraíso era nosso, quanto mais conturbado, mais em casa ficávamos. No sábado, uma festa fechada... ficamos inconsoláveis, sem rumo, até que, logo quando nos conformávamos e preparávamos para dar meia volta, as portas abriram, uma banda começou a tocar e entramos no nosso lugar. Bebemos, dançamos e comemos dois quilos de uma sobremesa absurdamente boa, de efeitos colaterais bastante compensadores. Melhor não comentar.
O dia amanhecendo, cinza, fomos para casa. Paramos, os dezesseis gafanhotos, em Fraun Hildegard, claro, para o café au lait com croissants de todo dia. Ela não estava, apenas o estudante iraniano que trabalhava ali, mas não prestava muita atenção em nada mais que nossos pedidos e o seu ipod. Dessa forma, sem ninguém ligado ao mundo para anos lembrar, a páscoa passou despercebida. Dela só fomos ter consciência no dia seguinte, quando a recepcionista da empresa nos perguntou se havíamos sentido saudades de casa no domingo de Páscoa. Mas aí já havia passado.
Por isso eu digo que os planos são complicados. Senti falta do meu almoço tão pensando e desejado? Bom, na verdade, eu já o havia realizado milhões de vezes, em milhões de filmes, com pessoas de várias partes do mundo. Não trocaria minha páscoa por nada. Soul Kitchen  tinha sido uma boa surpresa – e uma ótima opção.



Soul Kitchen. De Fatih Akin, Alemanha, 2009, 99 min. Já disponível em DVD no Brasil

sexta-feira, 11 de março de 2011

Amélie e a Escada

Oi. Meu nome é Adriana e eu quero contar uma história.
Um dia, há alguns anos, fui ao cinema e, como não é muito raro, cheguei bastante atrasada. Comprei o ingresso e corri para o meu destino. Com o filme na cabeça, comecei a subir as escadas quando, ao olhar para cima, vi a pessoa que menos queria ver naquela época. Acho que para ele o encontro não era muito esperado também. Cruzamos nossos caminhos nos degraus, um para cima, outro para baixo, num esbarrão de ombros. Foi uma das coisas mais deprimentes que já vivenciei. Tão surreal que não parecia acontecer comigo. Talvez por isso não tenha pensado a respeito naquele momento. O foco era chegar na hora.


O filme era O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. Amei Amélie, sua imaginação enlouquecida tão parecida com a minha e com as pessoas que adoro, seu medo de quebrar em pedaços tão parecido como o meu, sua bisbilhotice com o bem estar alheio tão familiar. Ao final do filme, em prantos - Está certo... Amélie, minha menina... Você não tem ossos de cristal como eu, pode aguentar os baques da vida. Se deixar esta oportunidade escorregar por entre teus dedos, então, o tempo vai passar e teu coração ficará tão seco e frágil quanto o meu esqueleto. Então vá em frente! Pelo amor de Deus! -, voltei à cena da escada.



E uma coisa incrível aconteceu: percebi que a ficção havia sido o encontro de ombros, bruto e grosseiro, entre duas pessoas que até pouco tempo compartilhavam seus sonhos, idéias e esperanças. Mais real e próximo era o mundo de Amélie, projetado em luz e sombras na tela da sala de cinema.  Ele não era real por ser distante, pelo contrário; ele de mim estava impressionantemente próximo.

A ficção, seja no cinema, na literatura, na música, na pintura, na fotografia não é fuga, é encontro. Reconhecimento. Momento que prezo com maior cuidado, mesmo que o cinema seja quase rotina. Esses momentos compõem a minha vida em narrativas.


A história de Amélie e a escada é a primeira delas. Outras virão. Em todas elas, eu me encontro. Espero que você também. Este espaço é tão seu quanto meu. As histórias são infinitas, mesmo após o ponto final. Se você quiser complementar uma delas, contar a sua ou até mesmo mostrar a sua insatisfação, mande sua história.  Este espaço existe também para que se possa ir além dos comentários costumeiros, que, no entanto, serão sempre queridos. Mas podem ser restritivos. E uma coisa que não pode acontecer com os filmes, para mim, é se restringir a imaginação e a vontade de contar uma história.
Sendo assim, seja bem-vindo à imaginação de Amélie.