sábado, 12 de março de 2011

Movie Kitchen

Hamburgo sempre foi, para mim, a cidade para a qual os Beatles perderam o seu primeiro baixista e onde todas as bandas legais da Europa tocavam no começo da careira. Local dos shows de rock mais loucos, eu achava a cidade incrível.
Em 2009, cheguei ali para fazer um estágio na nova empresa em que iria trabalhar, de desenvolvimento e expansão de serviços de catering. Eu não cozinho, nem a água do chá eu fervo – a chaleira é elétrica. Que eu goste de chás dos mais variados e elegantes é uma surpresa para a minha mãe, que conhece o meu paladar bastante básico. Junk food da melhor e pior qualidade é a minha especialidade, somente com certa discriminação – as batatas precisam ser bem fritas...
Bom, o catering. A empresa desenvolve expansão de serviços de fornecimento de comida para vários setores do mercado. Um deles, o cinema. E na área de expansão eu me locomovo bem. Tenho uma curiosidade insana de conhecer diferentes setores da vida, e essa característica me rendeu um excelente emprego de bisbilhoteira profissional. Além de várias experiências inusitadas.
Uma delas foi na páscoa de 2009. Sozinha em Hamburgo, uma cidade desconhecida, de uma língua impossível para mim – apesar de eu amar o seu som -, resolvi convidar os dezesseis estagiários da empresa, pessoas capazes, jovens e neuroticamente empreendedoras de, se não todas, muitas das partes deste planeta, para almoçarem em um dos minúsculos flats em que vivíamos. A área residencial em que nos colocaram era ótima, mas sem muito comércio perto. Em vez de nos aventurarmos, como de costume, pelos diferentes locais de Hamburgo, vimos na idéia de uma reunião em casa a oportunidade para nos aproximarmos, conhecermos melhor – mais? - e nos divertirmos, claro. Hoje eu penso que era, também, uma tentativa nunca reconhecida – éramos descolados ou não? - de não sentir saudades da família. Mas esta era uma razão totalmente velada. Na capa do filme, todos éramos almas desgarradas no universo...
E então se deu a largada ao frenesi. Nada do que me proponho a fazer fica impune da neurose e exagero. Feito o convite, entrei numa maratona de idéias, para tentar fazer algo aconchegante, inovador, criativo, delicioso, incrível, impossivelmente irresistível e, claro, barato. A escolha de um tema ficou rondando a minha cabeça por algumas noites – de dia o trabalho não deixava espaço para enlouquecer com outras idéias. Antes de dormir, um dia, navegando nos canais da tv alemã – era engraçado -, alcancei o filme Simplesmente Marta pela metade. Como muitas das coisas em que me envolvo, o cinema deu a tônica. Trabalhava, entre outras coisas, com catering para produções cinematográficas. AHa. O tema da nossa páscoa iria ser, estava decidido, as comidas do cinema. Depois das congratulações pela genialidade (!!!), a procura.






Filmes em que a comida predomina? Tentando lembrar alguns, devo ter esquecido muitos. A Festa de Babette foi uma referência imediata, mas o cardápio sublime de Babette não fazia muito sucesso para mim fora da tela. Sopa de tartaruga, ovas de salmão, codorna... sou muito da carne processada para encarar de frente esse dinossauro. A sobremesa, talvez. Qual era? Tinha de pesquisar. Bom, mesmo sem tartaruga, ficou claro para mim que o clima do filme tinha de estar presente. Anotei mentalmente: afastar os poucos e feios móveis da sala e dominá-la com uma mesa gigante, montada de alguma forma. Não seria difícil, e todos os outros poderiam trazer suas próprias cadeiras. As louças iam dar trabalho também, mas isso eu podia resolver na boulangérie próxima, nosso único refúgio de croissant e canela nesse mar de residências alemãs minúsculas que era a nossa vizinhança.
Well, well. Que outros filmes? E o cardápio? Bom, de Simplesmente Marta, só se fosse a pizza ou o macarrão que o italiano prepara para a sobrinha. Julia & Julie, recente à época, eu amei, e dele escolhi o bolo de chocolate com amêndoas. Hush: baixei na internet o livro de Julia Child, escaneado de uma forma especialmente torta, mas ainda assim legível. Teria de fazer as bruschettas que Julie janta em uma cena, todos os tomates caindo no prato, uma bagunça. Desde o filme, fiquei mais obcecada que o normal por azeite, tomate e pão. Cheguei a me submeter a cópias infames – apelei inclusive para o Friday`s... -, apenas para não ficar na vontade. Mas o pato desossado não ia acontecer. Apesar disso, já podia visualizar todos os exilados, companheiros de schnaps, sentados na sala, em um dia frio, mas ensolarado, girassóis na sala alegrando a nossa existência – olha a viagem –, a satisfação e o agradecimento por uma comida tão boa... Alucinações a Amélie Poulain.


Certo. Havia também aquele filme dos gregos da cozinha, com as almôndegas com canela. Esqueci o nome. Mas moussaka me parecia muito difícil de fazer, apesar dos meus planos grandiosos, e esse foi outro filme que ficou somente na lembrança. As berinjelas de Mediterrâneo. Amo a cena do final. Azeitonas... O tiramissu de O Filho da Noiva. Pára por aí, porque não precisamos de uma terceira sobremesa. Ou talvez fosse uma boa idéia, variedade nunca é ruim. Os filmes com as histórias dos cozinheiros mais ilustres não me tocavam. Vatel, não. COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE, como podia esquecer? Tinha, inclusive, de dar um jeito de algumas lágrimas caírem na panela. A história estava ficando boa.
Confesso não ficar muito encabulada de reconhecer que, no que se trata de comida e imagens, as que mais me marcaram vieram de Queer Eye for the Straight Guy, o programa dos caras correndo a que não assisto mais, mas em que era viciada não há muito tempo. Pizza de pão folha com azeite, alecrim e parmesão, todo mundo adora. Cogumelos recheados de queijo de cabra e alecrim... de novo. Bom, até aqui, três entradas, três sobremesas, provavelmente muiiiiiiiiiiito vinho e conhaque e mais o que chegasse, queijo com certeza, mas nenhum prato principal.
E se eu inovasse de verdade e servisse hambúrguer? Não enlouquece, Amèlie. Raviolli de Champignons seria uma idéia divertida, mas todo mundo ia pegar no meu pé e me chamar de vampire nerd. Bom, talvez o spaghetti não fosse má idéia. Podíamos pensar sempre na Dama e o Vagabundo... Na angústia do cardápio perfeito, todos os filmes que me enlouqueceram de vontade de sair do cinema e cair na comida apresentada desapareceram da memória.
Lembrava de Chocolate, mas vamos dar um freio no doce.
Minha cabeça já doía só de pensar no assunto. Que crédito para o meu almoço bucólico. Bucólico, bucólico... Provença é legal. Mas não lembrava de nada ainda. Não é difícil pensar nas pessoas aboletadas numa mesa embaixo de uma árvore, muita comida, pão, vinho na mão... Mas mesmo assim, nada de lembrar dos cardápios. O protagonista eram as intrigas e o vinho. Itália? Não queria. Precisava de algo inovador.
Vários dias pensando no assunto, revi meus conceitos. Precisava tomar uma atitude. Assim, spaghetti ia ser. Com almôndegas. Divertido, leve, irreverente... Tomada a resolução, mesmo sem muita convicção, a paz se abateu sobre a terra.


Somente alguns dias antes do domingo de páscoa, já com a lista de compras pronta, o acerto da louça fechado com Hildegard, a dona da BoulangeriePain Allemand, o ex-marido é francês, daí a preferência pelo croissant -, os girassóis encomendados no mercado de flores, Cedric, um irlandês insano no meio de um povo não muito certo da cabeça, nos convidou para comer e beber de monte num restaurante na região do porto de Hamburgo. Houve protestos iniciais, um receio fingido, mas a excitação e curiosidade foram maiores, e todos concordaram. Essa era uma região ainda bastante desconhecida para nós, não muito recomendada, mas atraente na sua diferença. Sá havia faltado, até agora, um motivo para chegarmos lá – como se tudo que fizéssemos precisasse de uma razão plausível. Mas a notícia era que o restaurante era o máximo, a comida de um cheff famoso era acessível, a música maravilhosa, e, no final da noite, todos dançavam e bebiam e faziam mais o que acontecia de fazer.
Eu fui com a minha lista do almoço ainda no bolso do casaco, esperando uma oportunidade para ir ao mercado.


Soul Kitchen era o paraíso. Tudo o que se esperava e mais, muito mais. A nossa legião de gafanhotos – 16 pessoas andando em bando parecia uma praga – se encaixou sem problemas no galpão. O nosso barulho não era mais do que uma pedra jogada no oceano no meio do caos. A comida? Linda, o máximo. Carregada em bandejas acima das nossas, não era raro ela não chegar à mesa, surrupiada pelas mãos dançantes. As pessoas? Ninguém igual, uma delícia. Todos juntos e cada um por si.
Enlouquecemos. Jantamos na quarta, saímos de lá de manhã e só passamos em casa para tomar banho. Ao chegar ao trabalho, jurei que ia ao mercado quando saísse. Era quinta-feira, e acabamos no  Soul Kitchen de novo. Nem disfarçamos com um schnaps antes. Cheguei a minha casa com uma leve culpa e a lista do mercado ainda no bolso. Na sexta, numa cidade deserta, aquele era o único lugar a ir, claro. E quem vai ao mercado na sexta-feira santa??? Cheguei a casa dessa vez com uma lembrança bastante longínqua da lista... que foi parar embaixo do sofá quando joguei o casado no chão, ainda beijando o irlandês.


Os dias se passaram, se embaralharam, e perdemos um pouco a noção do tempo. Afinal, o paraíso era nosso, quanto mais conturbado, mais em casa ficávamos. No sábado, uma festa fechada... ficamos inconsoláveis, sem rumo, até que, logo quando nos conformávamos e preparávamos para dar meia volta, as portas abriram, uma banda começou a tocar e entramos no nosso lugar. Bebemos, dançamos e comemos dois quilos de uma sobremesa absurdamente boa, de efeitos colaterais bastante compensadores. Melhor não comentar.
O dia amanhecendo, cinza, fomos para casa. Paramos, os dezesseis gafanhotos, em Fraun Hildegard, claro, para o café au lait com croissants de todo dia. Ela não estava, apenas o estudante iraniano que trabalhava ali, mas não prestava muita atenção em nada mais que nossos pedidos e o seu ipod. Dessa forma, sem ninguém ligado ao mundo para anos lembrar, a páscoa passou despercebida. Dela só fomos ter consciência no dia seguinte, quando a recepcionista da empresa nos perguntou se havíamos sentido saudades de casa no domingo de Páscoa. Mas aí já havia passado.
Por isso eu digo que os planos são complicados. Senti falta do meu almoço tão pensando e desejado? Bom, na verdade, eu já o havia realizado milhões de vezes, em milhões de filmes, com pessoas de várias partes do mundo. Não trocaria minha páscoa por nada. Soul Kitchen  tinha sido uma boa surpresa – e uma ótima opção.



Soul Kitchen. De Fatih Akin, Alemanha, 2009, 99 min. Já disponível em DVD no Brasil

2 comentários:

  1. oi dri!

    adorei, adoro. para prolongar o papo: http://comideria.com/tag/dogma-95/

    beijos

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  2. Vi!!! feliz feliz!!! O comideria é muiiiiiiiiito legal, obrigada! E a fome?

    Prolongo o papo só mais um cadinho com uma frase que anotei hoje. É do livro Lunch in Paris, a love story with recipe, de Elizabeth Bard:

    “Meals can, and do, tell stories.” (p. 308).

    Beijosss!!!

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