terça-feira, 22 de março de 2011

Never Coming Home

Quanto JT voltou para casa da sua primeira missão no Iraque, Anne achou que tudo ia mudar. A rotina, o cinema de quarta-feira à noite com os pais, o café da manhã no domingo. Mas, fora os primeiros dias que se seguiram ao seu retorno, as coisas ficaram, na verdade, melhores.
Nos primeiros dias JT só dormia, comia, ficava um pouco com a família na sala de TV e voltava para a cama. Não estava triste ou nervoso ou meio louco. Anne havia visto alguns filmes de guerra na televisão, quando seus pais não estavam perto. Quis ver Nascido a 4 de Julho por  causa de Tom Cruise, num filme que ele fez antes mesmo de ela nascer. Não que tivesse gostado muito, aquele cabelo estava esquisito e ele passava a maior parte do filme gritando. Gostava sim de um outro filme sobre guerra, muiiiiiiiiito mais antigo que esse, porque o personagem lembrava um pouco JT. Mas o filme era realmente muito velho, muita coisa ela tinha certeza de que havia entendido errado, e o cara voltava da guerra sem andar, o que ela esperava não acontecesse com JT.
Seu pai gostava de outros filmes sobre guerras e tinha vários deles em casa. Ele os chamava de clássicos e de cinema de verdade. Ok, eram todos em preto e branco, mas ainda assim ela não via muita diferença. Além disso, nenhum dos personagens se parecia muito com seu irmão.
Depois dos primeiros dias, JT voltou a ser a formiga atômica que era quando adolescente, antes do exército. Eram as férias de primavera, e Anne não tinha de ir à escola. Foram os melhores férias em muito tempo. Ele queria ficar com toda a família, os amigos, mas especialmente com ela. Andaram de patins no calçadão da praia – ela andou, ele acompanhava correndo. Tomaram toneladas de sorvete. Foram ao cinema. Jogaram playstation. Passram muito tempo apenas conversando sobre nada, sentados na varanda da frente, tomando limonada, venod as pessoas passaram. JT fazia perguntas engraçadas sobre sua escola e amigos.
Esses foram os dias depois dos primeiros.      
Depois vieram os dias antes da volta para o Iraque. Fim do feriado de primavera, Anne voltou para a escola e encontrava JT apenas à tarde. Ela tinha deveres para fazer, milhões deles, os pais voltaram ao trabalho, a rotina da casa retornou. JT era uma presença maravilhosa, mas não mais novidade. Anne sentia como se a casa e companhia da família tivesse deixado de ser novidade para ele também. Começou a ficar inquieto, levantava da mesa no meio do jantar, andava de um lado para o outro. E só conversava sobre guerra. Sobre as suas missões no Iraque, sobre os seus companheiros de missão, sobre o calor, as bombas, as pessoas na rua.
Falava muito sobre o hurt locker da sua companhia. Ele o admirava e contava coisas que Anne ouvia sentada no alto da escada, escondida. Ela não sabia, no entanto, se aquilo era verdade. Pedaços de bomba guardados numa caixa como se fossem brinquedos velhos. As bombas escondidas em carros; na terra, no chão, no meio da rua. As pessoas que explodiram com as bombas que não desarmaram. Eram histórias tão estranhas, que mesmo vindo dele não faziam sentido. 
O que era mais estranho era que ele não estava mais ali. Anne não tinha coragem de comentar isso nem com sua mãe, achava esquisito. Ela podia vê-lo, mas era como se ele ainda estivesse na guerra. Como se não tivesse voltado para casa, e os dias depois dos primeiros dias fossem apenas fotografias de outras férias. Não comentava também porque achava que estava sendo ingrata. Seu irmão estava ali, vivo, e ela não podia ficar mais alegre com isso.
Se ele não pudesse mais andar, ou tivesse ficado louco e gritasse com todo mundo talvez ela entendesse. Mas não conseguia compreender por que ele não falava mal da guerra. Ele só contava aventuras, como se gostasse de lá. Como se lá fosse a sua casa, como se o sargento da bomba fosse o seu irmão, e não ela.
JT voltou para o Iraque, e só deve voltar em um ano. Uma missão mais longa. Ele deu um abraço apertado em toda a família antes de partir, falou coisas engraçadas para não ficarem tristes. E partiu como se estivesse indo para um lugar muito legal, animado, e não a guerra.
Com um aperto no coração ao vê-lo ir embora novamente, Anne sentiu como se ele não tivesse mais voltado.



The Hurt Locker (Guerra ao Terror). De Katrhryn Bigelow, US, 2009, 131 min. Lembrei muito de Coming Home (Amargo Regresso) quando vi esse filme, a percepção de que a guerra acaba com a possibilidade de o soldado voltar para casa. Mesmo que ele saia vivo da guerra, ele não retorna. Em O Narrador (Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, Obras Escolhidas I), Walter Benjamin diz que os soldados voltam da guerra vazios de narrativa, pois a guerra é uma das experiências mais desmoralizantes que se pode vivenciar. Dela não se volta rico em experiências, mas completamente vazio. 

Um comentário:

  1. Esse eu ainda não tinha lido. Gostei muito. Fez-me lembrar daqueles lances que a gene usava para apasgar as fitas cassete antes de gravar de novo; acho que era desmagnetizador. Parece que as experiências traumáticas desmagnetizam a alma da gente.

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