quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Cursed by Madness - I love You, Mr. Kinsky.





Algumas viagens que realizamos criam, em nós, narrativas que nunca imaginaríamos. São impressões, devaneios, viagens internas que vivenciamos enquanto flanairs numa terra estrangeira.
Outra viagem são as pessoas que encontramos, amigos que se tornam muito queridos e uma constante na nossa vida - mesmo com a distância geográfica que não nos separa. O primeiro encontro é especial. O reencontro, um presente.
Em Londres por esses dias, alguns reencontros inesperados aconteceram. Uns foram felizes, outros, inusitados.  O que trago aqui abalou meu coração.


Não que eu esperava que isso acontecesse. Se pensasse na hipótese de encontrar Shandurai novamente, apenas ternura e uma grande admiração chegavam até mim. Mas nem sempre as ideias correspondem ao que sentimos num determinado momento... E assim que foi crushing a conversa que tive com Shandurai numa rua de Londres, sentadas no café de um cinema da cidade.
Eu estava ali em outro reencontro, este muito feliz. Clarice é uma amiga querida que revi em Londres. Foi inesperado também, mas um muito feliz. Alegre, férias de verdade.
Extraordinariamente sem nada específico para fazer numa semana repleta de compromissos, nós duas acabamos por chegar a um cinema minúsculo, um dos últimos em Londres, meio vagando pelo espaço, olhando os cartazes dos filmes. Um lugar pequeno, muito especial. Confortáveis ali, como se no sofá de casa zapeando pelos canais da TV, movimentámos pelas narrativas expostas na parede, em molduras de vidro: olhávamos os cartazes e comentávamos que filmes havíamos visto, de qual deles gostamos mais, quais foram os que nos causaram imensa repulsa.
E assim, sem esperar, eu a vi, sentada a uma mesa, um café na mão, o olhar no vazio. Não resisti e me aproximei.


Shandurai não estranhou a minha aproximação. Já havíamos nos encontrado antes, em diferentes épocas da minha vida. Em todos esses encontros, a conversa foi doce. Desta vez, no entanto, o reencontro foi mais intenso.
E não sei por quê. Não questiono muito também. Mas uma imagem nova surgiu para mim numa paisagem que considerava tão conhecida Essa nova perspectiva me incomodou, assim como abalou algumas certezas.


Explico. Nas vezes que encontrei Shnadurai, nesses doze anos de convivência, sua trajetória de imigrante na Itália, em exílio da África, me comovia. A escolha que teve de fazer, entre seu marido e um novo amor, surgido na música, na admiração e, claaaaaaaaaaro, na confusão de sentimentos que vivia à época me diziam como esta vida realmente nos surpreende. Como não conseguimos explicar tudo – os sentimentos, as decisões, os acontecimentos. Nem sempre – ou melhor, quase nunca – a paixão vem como num filme de Meg Ryan. Ia ser bom. Feliz, alegre, divertido. Mas não intenso. E intensidade é o que não falta na história de Shandurai.
Esse reencontro é uma prova forte disso. E explicar é overated, afinal de contas. Assim como a realidade... mas aí já estou chegando a outros reencontros.
Este relato é para Shandurai e sua escolha impossível.


Eu nunca tive um vislumbre tão claro de qual havia sido a decisão de Shandurai quanto nesse encontro em Londres. Não sei se a perspectiva de outra pessoa me apresentou um novo olhar – Clarice se impressionou muito com a história da mulher que se apaixona meio a contragosto pelo seu patrão na Itália, enquanto espera que seu marido seja libertado da prisão. Entre o amor forte, leal e lutador de uma vida compartilhada e o amor encantado e persistente pelo artista desengonçado, o coração e o corpo de Shandurai se dividiram.
Não havia visto, antes desse reencontro, a fúria de Shandurai ao ser confrontada com a escolha imediata entre dois homens. Entre dois amores – olha ai outro filme... Escolha imediata, forçada e incrivelmente impossível, a meu ver. Mas sua raiva estava presente ali, sentadas juntas no conforto do minúsculo cinema no centro da cidade.


Sua frustração e ressentimento pelo coração dividido – e estraçalhado na divisão - se mostravam ali. O amor, longe de ser uma nova possibilidade, uma ruptura forte com um modo de vida estagnado, apresentou-se para Shandurai como uma facada no coração, uma ferida que não se cura e se expande para os que estão ao seu redor.
O sorriso feliz e doce de Mr. Kinsky diluiu-se na fúria. A esperança por uma vida livre da perseguição política ficou esquecida diante de novos confrontos. A nova vida de Shandurai, desafiante e cheia de possibilidades, transformou-se na angústia da impossibilidade da escolha.
E ali estava ela, não mais uma estudante de medicina tímida, com uma bagagem dolorida no seu passado, mas também com novas conquistas à vista. Ao final da sua residência num hospital de Londres, com olheiras nos olhos e um peso na sua fala, a impossibilidade da sua escolha mostrou-se para mim, pela primeira vez, de forma amarga, dura e furiosa. Um choque inesperado.
Despedi-me mais uma vez de Shandurai – até o próximo encontro, eu disse, tentando mostrar-me leve. Não enganei ninguém, principalmente Clarice, que saiu desse encontro mais abalada que eu.
Apesar da intensidade e fúria desse encontro, ainda mantenho, comigo, a doçura do seu apaixonar-se gradual, inesperado e doce, musicado e angustiante, insano e embriagado. Esse é um dos encantos que me aproximam da história de Shandurai. Uma história que, como pude ver por esse reencontro, ainda não se encerrou para mim.


 Touched by Genius. Cursed By Madness. Blinded by Love.
Assédio (Besieged. Bernardo Bertolucci, o famoso Bertô, Itália/UK, 1998 - a frase acima refere-se à tagline presente no perfil do filme em http://www.imdb.com/title/tt0149723/). Eu amo Bertolucci. Mesmo que veja muito exagero em alguns de seus filmes - e o exagero não faz parte da intensidade??? -, ele, para mim, é o cineasta que filma o amor e o sexo de forma mais honesta e próxima do que sinto.  Quando vi Assédio pela primeira vez, não acreditava na doçura de sua narrativa, numa pessoa tão inacreditavelmente deslocada como Jason Kinsky, o pianista por quem gostaria de me apaixonar. O amor que chega contra a nossa vontade e as nossas possibilidades... uma cachorrada e um presente do universo.
Tudo o que esse filme me traz não cabe nesta história, neste parágrafo ou numa explicação. Viajo por tudo que ele me traz, embalada pela trilha sonora inacreditavelmente bela e intensa. Amo o amor em Assédio, mas desta vez ele me assustou. Não havia ainda percebido a raiva de Shandurai ao afastar o braço de Mr. Kinsky de si, ao levantar da cama ao final do filme.  Essa cena foi incluída depois ou para mim, até este momento, somente o encanto de um amor tão doce ficara na minha retina?
Revi o filme no conforto do sofá da minha sala, na companhia feliz de uma amiga que não via há anos, Luciana. Chegamos ao filme por acaso – o nosso destino inicial era Manderlay (Lars von Trier, Dinamarca/Suécia/Países Baixos/França/Alemanha/UK/Itália, 2005). Mas quando vi Assédio na programação da TV a cabo, não resisti e o sugeri para a Lu. O filme ficou conosco por dias, e Bertô foi uma presença constante nas nossas conversas.
Hoje comprei o livro We Need to Talk About Kevin, de Lionel Shriver, que está para chegar aos cinemas. Da mesma autora li The Post-Birthday World, de que gostei demais – ele se encontra em http://asviagensdeamelie.blogspot.com/2011/09/entre-agosto-e-setembro-alguns-livros-e.html, o blog irmão de Os Degraus. Na introdução ao livro, uma observação que me disse muito do que sinto com Assédio: como uma história pode ir além do seu contexto, pode ser maior que o que está contido nas páginas do livro – nas imagens do filme, na trama dos personagens... Como ela não se limita ao que conta, mas se expande ao mundo com tudo o que traz em si.
Assim é Assédio para mim... e cada vez que o revejo, percebo algo mais que me leva pra além do que havia visto antes. 



domingo, 11 de setembro de 2011

A realidade que superou a ficção - lembranças...




Olá! Esta é uma reedição de uma história que o Degraus trouxe em março deste ano. Nos dez anos do ataque às Torres Gêmeas, em NY, em 11 de setembro, eu a trago aqui novamente (enquanto esta blogueira na preguiça não escreve uma história nova...). Coincidência - se esta existe - ou não, hoje, por volta de uma 1 hora da manhã, descobria que o livro que estou lendo no momento - The Post-Birthday World, de Lionel Shriver -, sobre duas possibilidades de existência da personagem a partir de uma escolha específica, chegava até o 11 de setembro de 2001.

Histórias - filmes, livros, músicas, relatos - sobre o 9/11 são muitos. Chegam a nós de diferentes formas e nos tocam também de distintas maneiras. Mas, sobretudo, contam para mim sobre uma realidade que poderia parecer distante, mesmo que absurdamente trágica, se não fossem pelas narrativas que elas nos trazem. As notícias não dão conta do que a ficção, nesse caso, consegue trazer para tão próximo de mim. 

Sobre essa proximidade, e a surpresa de encontrá-la ainda, é a história que se segue.
SPOILER ALERT + SPOILER ALERT + SPOILER ALERT + SPOILER ALERT

Recomenda-se a leitura desta história para as pessoas que viram o filme Lembranças, de Allen Couter, 2010. Há referências, aqui, a um dos personagem, assim como sobre o final do filme. Este, ao meu ver,  deve ser visto sem nenhuma idéia prévia do que se trata. Por isso todo esse estardalhado do spoiler alert, rs.
Mas essa é apenas uma sugestão, porque a escolha é sempre sua!!!



Daniel, que sempre amara os filmes,  ainda tinha a capacidade de se impressionar quando sua vida se parecia com um. Não em enredo, o que era muito difícil numa existência de 21 anos sem muitos acontecimentos drásticos, dramáticos, engraçados. Uma vida, enfim, sem acontecimentos que ele pensava serem dignos de uma narrativa cinematográfica. A semelhança não eram as tramas, mas as imagens.
Este momento mesmo. Ele encontrava-se no sofá, enrolado em si mesmo, no que seria outra tarde preguiçosa de domingo. Largou o livro que lia sobre o colo, esticou as pernas, que estavam cruzadas numa posição que sempre considerara meio desajeitada ao olhar do outro, mas que se adaptava perfeitamente ao conforto de que necessitava seriamente ao ler. Olhou para o lado em direção à luz que entrava pela janela.

Lá estava Caroline. A luz do final da tarde a envolvia para, então, cruzar a sala do apartamento. Ele sabia que se a chamasse agora, ela não ouviria. Às vezes, como neste momento, ela se perdia, no nada. Para estar ao seu lado, era preciso entender. E Daniel o fazia sem esforço e sem necessidade de explicação. Não era racional, ele não sabia por que compreendia. Mesmo assim, sabia que essa ausência era parte dela, um todo que ele amava também sem necessidade de elaboração.
Mas a explicação de certa forma viera, um ano atrás. Ele acordara sozinho na cama, no apartamento de Caroline. Sonolento, notara a sua ausência e voltara a dormir. Havia acordado novamente mais tarde, andado meio perdido pelo apartamento. Tomou banho, arrumou a cama e se recostou nos travesseiros para esperá-la. Lendo. Ele lembrava que não havia ficado ansioso, nervoso ou preocupado. Difícil ter qualquer um desses sentimentos na casa de Caroline ou em sua presença. Ambos eram claros, belos, serenos e intensos. Ali ele ficou. Leu, dormiu mais e acordou com ela sentada ao seu lado.
Pernas cruzadas, vestido preto, cabelo solto, sua figura era serena. Ela estava de luto, mas Daniel não fez a associação de imediato. Com tranqüilidade, a mão nos cabelos de Daniel, ela contou a história das manhãs de 11 de setembro, vividas em homenagem ao irmão desde o primeiro “aniversário” do atentado.

Daniel ouviu a história, e outras imagens vieram pela narrativa de Caroline. Reconhecimentos que encontrou no cinema. Em 2001, com 12 anos, as imagens do atentado às Torres em Nova York e a reação das pessoas se misturavam em sua imaginação. Ao ver os aviões se chocando com as torres na televisão, tudo lhe pareceu estranho, alienígena, distante. Ele estava ali, e todo o alvoroço lhe pareceu desproporcional.
A proporção da tragédia, para ele, chegou pelas histórias no cinema. Narrativas ficcionais ou baseadas nos contos de sobreviventes e familiares,  elas eram igualmente ficção para ele. Histórias contadas por diferentes narradores, diferentes imagens, elas não eram mais palpáveis para ele se contadas por uma pessoa. Elas o conseguiam atingir muito profundamente quando em uma música, um livro ou imagens do cinema. Bom, de qualquer maneira, todas elas  traziam para ele uma parte do lugar que era, agora, não mais um país estrangeiro, mas a sua casa. A cidade da qual fazia parte. Na qual andava, estudava, vivia. Na cidade onde se apaixonara.
A história de Caroline não era muito diferente das que ouvira antes. Nela ele ouviu a perda, a tragédia, o inesperado, o luto, o entendimento, a superação, a saudade, a homenagem, o amor. A forma como Caroline a contou, no entanto, mudou tudo. Quando achou que nada mais lhe surpreenderia sobre o já tão desgastado atentado às torres gêmeas, Caroline e os outros personagens da sua história o comoveram de uma forma surpreendente e triste. Assim foi não pela proximidade de Caroline com o que ocorreu, mas pela sua forma de contar a história. Nela, as relações mais profundas e as mais banais fizeram parte da tecida delicadeza com que contou sua história. E a ela conferiram uma intensidade que escapava ao sensacionalismo, ao oportunismo político  e à exploração da dor que ele presenciara até então.
Na história de Caroline, todos os personagens a compunham de forma delicada, intensa, importante.  O fim, o atentado em 11 de setembro, conferia ao conto a finalização, dava seu impacto. Mas não reduzia o que acontecera antes, ou que estava para chegar. As relações entre os personagens da sua história, permeadas por tragédias menores e a maior delas, não se reduziam, no entanto, à perda.
Tudo isso Daniel pode entender neste domingo, quando acompanhou Caroline, sua mãe e padrasto, seu pai, Ally e Aidan, na visita ao túmulo de Tyler, irmão de Caroline, morto no ataque às torres gêmeas. Mais um 11 de setembro, dez anos depois do primeiro. Uma data que tomou outros significados, não só pelos eventos que a marcaram nos Estados Unidos em 2001. Mas também por todas as historias que transformaram o fato e as pessoas que dele participaram em personagens de uma grande narrativa. Narrativa da qual, nessa tarde de domingo, ele era personagem também.




Remember Me (Lembranças). De Allen Coulter, EUA, 113 min, 2010. Assistido três vezes no cinema, duas seguidas, em março de 2010, no Embracine, Casa Park, outra com a Pat querida, no Cinemark, na sessão mais trash de que tive noticia nos últimos tempos...