Neste terceiro e último relato dos reencontros maravilhosos em Londres, algumas "coincidências" me levaram a uma pessoa muito, muito amada e a uma época preciosa.
Acordei num dia especialmente cinzento no verão londrino - essa história ocorreu já há alguns meses, a narradora está de fato atrasada... Shorts e camisetas de lado, tirei a calça do fundo da mala, embrulhei-me num casaco e fui caminhar. Assim, sozinha, de bobeira. Caminhando pelas ruas, admirando as vitrines, deixando registradas na memória as diferentes pessoas que passavam pelo meu caminho. Andando assim, um Flâneur na multidão, descobri uma loja de trilhas sonoras de cinema. Entrei e outra viagem começou.
Ao pisar no tapete alaranjado, fui transportada aos meus doze anos... Do autofalante da loja, a voz de Cat Stevens ressoava no meu coração.
Trouble oh, trouble set me free. I have seen your face and it's too much, too much for me. Trouble, oh , trouble can't you see? You're eating my heart away and there's nothing much left of me.
I have drunk you wine.
You have made yours worth mine
so won't you be fair?
So won't you be fair?
I don't want no more of you, so won't you be kind to me, so let me go where, I want to go there. Trouble, Oh, trouble move away. I have seen your face, and It's to much for me today. Trouble, oh, trouble can't you see? You have made me a wreck, now won't you leave me in my misery?
Como que acordando de um sonho, eu olhei ao meu redor. Que figura eu fazia ali, estática na entrada de uma loja, mergulhada em lembranças e emoções de vivências passadas. Disfarcei-me em uma cliente normal olhando as prateleiras e caminhei por aquele espaço ainda em imersa em devaneio.
Trouble tem uma letra forte, triste... mas ela me enche de alegria. E de esperança. E força. Vai entender? As palavras e sons da música me levam a uma experiência preciosa e amada, e nele eu mergulhei. O que havia na loja que me chamara tanto a atenção a ponto de nela entrar? Não sei... Dela saí ainda com Trouble e resolvi sentar em algum lugar para deixar o coração assentar no peito.
Encostada na janela de um café, agora eu estava na vitrine: as pessoas que passavam correndo na rua, atrasadas para o seu destino e inconformadas com o dia frio que invadiu seu verão, se permitiam um olhar de inveja para quem estava sentado confortavelmente em poltronas gordas com suas xícaras fumegantes na mão. Eu era uma dessas pessoas, sentada, confortável. Eu estava, no entanto, em outros lugares.
E o meu olhar? Ah, o meu olhar ultrapassava essa barreira humana e se fixava na imagem no outro lado da rua. Uma explosão de girassóis invadia a paisagem cinzenta. De todos os tamanhos, maravilhosos e intensos, eles ocupavam, em foto, toda uma parede entre duas lojas. Brilhantes, eles me fizeram mergulhar mais profundamente nas lembranças.
Nesse momento eu era só devaneio. Paguei o café, me confundi novamente com o turbilhão de pessoas e reassumi meu andar de Flanêur. Sem objetivo conhecido, sem identidade.
E, assim, o meu destino - inconsciente, mas determinado desde o início da minha jornada nesse dia inusitado - se concretizou à minha frente. Parei na entrada de um teatro pequeno, espremido entre uma livraria enorme e um restaurante indiano. Na porta, um rosto conhecido: Harold and The Banjos, dizia o cartaz. Trouble, os girassóis... migalhas de pão que me conduziam aonde eu tinha de chegar. E ali estava eu.
Um cabeludo colorido e muito alto abriu a porta do teatro apressado. Parou um instante, percebeu a estátua humana de olhos vidrados no cartaz e perguntou se eu queria entrar. E ele o fez com um grande e brilhante sorriso de girassol. Eu acenei que sim e o segui para o calor e colorido da sala de espetáculos.
Uma banda se posicionava no palco. Algumas pessoas se espalhavam pelo teatro. Entrávamos na sala de um ponto mais alto. Ao descer pelo corredor entre as fileiras de cadeiras de veludo verde desbotado, eu saía do plano geral e ia, aos poucos, compondo também o cenário. Quase em frente ao palco, o cabeludo colorido muito alto parou, sorriu novamente - girassol!!! - e apontou para uma figura solitária sentada ao centro. Virou-se e me deixou sozinha para continuar meu caminho.
Eu me aproximei de Harold com a delicadeza que minha emoção exigia. Sentei ao sei lado, em silêncio. Meu olhar se fixou no palco por vários minutos até que, ainda com muito cuidado, virei a cabeça. Nós nos olhamos ao mesmo tempo. Sorrimos também ao mesmo tempo, e lágrimas chegaram aos meus olhos.
Os sons do nosso primeiro encontro surgiram novamente para mim:
Trouble, oh, trouble
move from me
I have paid my debt
now won't you leave me in my misery.
Trouble, oh, trouble
please be kind.
I don't want no fight
and I haven't got a lot of time.
Quanto tempo eu não o via! Tantos sinais no dia e eu mal imaginava que Harold estaria no final do arco-íris me esperando. Envelhecido, o cabelo grisalho, rugas de vários risos ao redor dos olhos, ele, no entanto, me parecia o mesmo. Os mesmos olhos arregalados de espanto diante da vida - que continua a surpreendê-lo. O seu sorriso de margaridas... Ele segurou minha mão, a apertou com carinho e encostou-a no coração. Com um beijo, ele a colocou no meu colo, levantou e se juntou à sua banda para o ensaio.
Eu permaneci ali, com ele, como em todos esses anos em que não nos vimos. E ali iria permanecer por várias horas. Esquisito falar em horas, porque o tempo era outro ali. Suspenso em sentimentos e lembranças, os minutos não eram lineares.
Harold pegou seu banjo, acenou para a banda, sorriu novamente para mim e disse em música as palavras da minha alegria:
Well, if you want to sing out, sing out
And if you want to be free, be free
'Cause there's a million things to be
You know that there are
Quando me perguntam quais filmes são os meu favoritos, eu sempre fico em confusão. É impossível para mim lembrar do que me tocou tão fortemente assim, de supetão. Mas quando essa emoção se apresenta para mim novamente em imagens, aí fica fácil fácil Harold and Maude (Ensina-me a Viver. Hal Ashby, Us, 1971) é sem dúvida um dos filmes mais amados para mim. Eu o vi adolescente ainda. Nos anos 90, ele foi muito importante para mim. Mas ele não era fácil de encontrar. A trilha sonora de Cat Stevens também não estava assim disponível, e numa época em que a internet não estava aqui para permitir acessos antes impossíveis, eu andava pelas lojas procurando o CD. Até que o encontrei em uma loja em outra cidade - não lembro qual... Rio? Foi um acontecimento que dividi com Vivi, que compartilha comigo do amor pela história.
Este ano Harold and Maude reapareceu em várias circunstâncias diferentes da minha vida, e foi um reencontro importante. O DVD está à venda... Esbarrei na trilha sonora perdida aqui em casa e a levei para o carro, para ficar sempre comigo... Verônica, amiga de estudos do doc, declarou seu amor pelo filme e o trouxe para a sua escrita de memórias... E,finalmente, um sonho com Maude, que está no Degraus.
Sobre o Flâneur, que Verônica também trouxe no seu diário de viagens e pesquisa, vale procurar mais sobre esse observador vagante da vida e da cidade nos escritos de Walter Benjamin : )
Sobre o Flâneur, que Verônica também trouxe no seu diário de viagens e pesquisa, vale procurar mais sobre esse observador vagante da vida e da cidade nos escritos de Walter Benjamin : )
O amor pela vida que Maude mostrou a Harold invadiu meus dias e chegou até aqui, no Degraus, meu espaço de viagens, lembranças e declarações de amor a essas pessoas importantes na minha vida que são os personagens da ficção.
And there's a milions ways to go, you know that there are...